ENFERMAGEM, CIÊNCIAS E SAÚDE

Gerson de Souza Santos - Bacharel em Enfermagem, Especialista em Saúde da Família, Mestrado em Enfermagem, Doutorado em Ciências da Saúde - Universidade Federal de São Paulo. Atualmente professor do Curso de Medicina do Centro Universitário Ages - Irecê-Ba.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Considerações sobre função e declínio funcional


PRINCÍPIOS GERIÁTRICOS
A manutenção da função é uma meta fundamental dos cuidados geriátricos e um elemento importante do envelhecimento bem-sucedido. Assim como outras síndromes geriátricas, o declínio funcional é multifatorial; fatores médicos, psicológicos, sociais e ambientais podem contribuir para o comprometimento do estado funcional. A Classificação Internacional revisada da Organização Mundial de Saúde sobre Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) fornece um sistema de avaliação da função para a prevenção e o tratamento do declínio funcional que enfatiza a inter-relação dos fatores contributivos. A CIF classifica as anormalidades na estrutura dos sistemas orgânicos ou da função fisiológica como comprometimentos. Esses comprometimentos levam à dificuldade com as atividades individuais, e as limitações e barreiras associadas com essas dificuldades levam, por sua vez, a participação reduzida na sociedade. Fatores ambientais (p. ex., rampas, barras de apoio) e fatores pessoais (p. ex., educação ou suporte social) que não fazem nada para abordar o comprometimento subjacente podem, apesar de tudo, influenciar o efeito do comprometimento nas atividades e na participação social. Por exemplo, uma mulher com tremor essencial benigno grave (comprometimento) pode ter dificuldade em alimentar-se (atividade) e, portanto, não sair para almoçar com suas amigas (participação). Intervenções para melhorar a função dos idosos podem abordar não apenas os comprometimentos subjacentes, mas também os fatores relevantes pessoais e ambientais.
Os clínicos frequentemente pensam em função em termos de atividades importantes específicas, como as atividades da vida diária básicas e instrumentais (AVDs, Quadro 2-1). As AVDs básicas se referem às capacidades necessárias para cuidados pessoais, incluindo andar, vestir-se, tomar banho, usar o vaso sanitário, transferir-se da cama para a cadeira, arrumar-se e alimentar-se. As AVDs instrumentais (AIVDs), como fazer compras e trabalhos de casa, utilizar transporte, usar o telefone, controlar as finanças e controlar as medicações, são necessárias para a vida independente na comunidade. A consciência dos déficits funcionais que costumam preceder os problemas com as AVDs pode ajudar os clínicos a antecipar potenciais dificuldades com as AVDs. Em Considerações sobre função e declínio funcional Susan E. Hardy, MD, PhDparticular, problemas com mobilidade, como andar 400 metros ou subir escadas, e limitações dos membros superiores, como dificuldade em elevar objetos acima da cabeça ou agarrar pequenos objetos, em geral precedem a dificuldade com as AVDs e colocam os idosos em risco de declínio funcional adicional. A detecção precoce de dificuldade com a mobilidade, limitações das extremidades superiores ou declínio nas medidas de desempenho, como a velocidade da marcha, podem permitir intervenções para prevenir a progressão para incapacidade com as AVDs.
Déficits funcionais em idosos não são o simples produto dos seus diagnósticos médicos, mas sim um elemento fundamental na qualidade de vida e o principal determinante da capacidade de viver independentemente na comunidade. Como muitas doenças e comprometimentos de idosos não podem ser curados ou eliminados, a prevenção e o tratamento do declínio funcional devem envolver não apenas o tratamento clínico da doença, mas também alterações ambientais para driblar comprometimentos refratários, intervenções psicológicas para aliviar os medos e frustrações associadas com o comprometimento físico, e a organização de recursos para prover o suporte necessário a fim de manter os idosos com segurança na comunidade.
EPIDEMIOLOGIA DAS LIMITAÇÕES FUNCIONAIS
Mais da metade dos idosos relatam dificuldades com mobilidade, AIVDs ou AVDs. Em 2010, 32% dos idosos com mais de 65 anos de idade nos Estados Unidos, representando quase 13 milhões de pessoas, tinham dificuldade com as AVDs básicas. As limitações funcionais aumentam com a idade e são mais comuns em mulheres do que em homens (Figura 2-1). Embora o declínio funcional com a idade em geral seja assumido, de maneira incorreta, como inevitável e firmemente progressivo, pesquisas mais recentes têm mostrado que muitos adultos mantêm sua independência na idade avançada e que a maioria dos idosos que desenvolve incapacidade recupera posteriormente a sua independência, pelo menos temporariamente. Cerca de 6 a 10% dos idosos que vivem na comunidade de forma independente em suas AVDs básicas irão relatar um declínio na dependência da AVD um ano depois.
Doenças agudas, particularmente aquelas que exigem hospitalização, são os eventos mais comuns que precipitam declínio funcional. A imobilidade, a má nutrição e hidratação e o delirium, que costumam acompanhar as internações hospitalares, colocam os idosos em risco de descondicionamento e declínio funcional. A restrição de atividades, como ficar na cama ou reduzir as atividades usuais, também está associada com o desenvolvimento de incapacidade. Quedas, mesmo sem lesão, podem estar associadas com medo subsequente de quedas, levando a restrição de atividade e incapacidade. O estado funcional é, consistentemente, um dos mais fortes preditores de morbidade e mortalidade entre idosos. As limitações funcionais estão associadas com má qualidade de vida, institucionalização e mortalidade, bem como aumento dos cuidados de saúde e gastos. Comparados com idosos sem incapacidade para as AVDs, aqueles com incapacidades para as AVDs são cinco vezes mais propensos a ser institucionalizadose três vezes mais propensos a estar mortos dois anos mais tarde. O custo anual em dólares (em valores de 1991) com os cuidados de idosos com deficiências na comunidade variou de 6.340 dólares para os menos incapacitados a 17.017 dólares para os mais incapacitados. Resultados similares foram observados para
déficits de mobilidade. Comparados com idosos sem dificuldade de andar 400 metros (e após ajustar para múltiplos outros fatores de risco), aqueles que podiam andar apenas 400 metros com dificuldade tinham uma probabilidade 1,6 vezes maior de morrer e quase três vezes maior de desenvolver novas incapacidades para as AVDs básicas ou instrumentais. Os custos totais anuais de saúde eram 2.773 dólares mais altos nos idosos com dificuldade de andar 400 metros do que naqueles sem dificuldade. A morbidade e o custo associado com a incapacidade combinados com o crescimento antecipado no número de idosos nas próximas décadas fazem da prevenção do declínio funcional um importante tema de políticas de saúde pública. 
AVALIAÇÃO DO ESTADO FUNCIONAL
O estado funcional pode ser avaliado por autorrelato ou relatório de terceiros, por testes de desempenho físico ou observação direta da execução de tarefas. Esses diferentes métodos fornecem informações complementares. Um simples rastreamento clínico para as dificuldades funcionais deve incluir um autorrelato das dificuldades ou da necessidade de ajuda com as AVDs básicas e instrumentais, bem como uma observação das transferências e da deambulação do idoso. Em idosos com evidência de comprometimento cognitivo, é importante confirmar a capacidade autorrelatada de realizar AVDs sem um cuidador ou outro informante adequado. Os relatórios de terceiros tendem a superestimar os déficits funcionais, mas a sua acurácia melhora à medida que o seu contato com o paciente aumenta. As medidas simples do desempenho físico têm mostrado ser exequíveis em ambientes de cuidados primários, onde elas têm fornecido informações prognósticas importantes. A velocidade da marcha, que pode ser medida facilmente com um cronômetro e uma marcação de distância de 4 metros no chão, está altamente correlacionada com declínio funcional subsequente e mortalidade. Os pontos de corte clínicos para a velocidade da marcha facilitam a interpretação: maior do que 1 m/s sugere mobilidade intacta e entre 0,6 e 1 m/s indica alto risco; a maioria dos adultos com uma velocidade da marcha menor do que 0,6 m/s já tem dificuldade com as AVDs. Uma alteração com o tempo de 0,1 m/s é clinicamente significativa. A velocidade da marcha e outras avaliações padronizadas do estado funcional podem ser particularmente
úteis na monitoração da função ao longo do tempo. Diferentes ambientes de reabilitação usam ferramentas específicas para avaliar o estado funcional e alterações na função.  As dificuldades relatadas nas AVDs ou problemas observados com a marcha e transferências devem deflagrar uma avaliação mais detalhada para identificar fatores contribuintes potencialmente modificáveis do declínio funcional. A avaliação desses idosos de alto risco deve incluir estado cardiopulmonar, força, equilíbrio, amplitude de movimento funcional, cognição, humor, dor e estado nutricional. O fisioterapeuta e o terapeuta ocupacional podem fornecer uma estimativa mais detalhada da função e da mobilidade.

FATORES DE RISCO PARA DECLÍNIO FUNCIONAL
Além dos fatores demográficos como idade e sexo, muitos fatores biopsicossociais estão associados com declínio funcional. Limitações no desempenho físico são um forte fator de risco para incapacidade subsequente na mobilidade bem como nas AVDs básicas e instrumentais. Comparados com idosos com uma velocidade de marcha regular de 1 m/s ou mais, aqueles com velocidade da marcha menor do que 1 m/s são duas vezes mais propensos a se tornar incapazes de andar 800 metros ou subir escadas, e três vezes mais propensos a desenvolver uma nova dependência nas AVDs. Episódios transitórios prévios de incapacidade também estão associados com recorrência. Comparados com idosos sem incapacidade nos 18 meses anteriores, idosos que apresentaram um episódio de dependência nas AVDs foram duas vezes mais propensos a experimentar um episódio subsequente de incapacidade. Idosos com maior comorbidade, mais medicações, mais sintomas depressivos, baixa atividade física, obesidade ou baixo peso, desnutrição, desidratação, interação social, déficit de audição e déficit visual são mais propensos a experimentar declínio funcional. Tabagismo e consumo excessivo de álcool também estão associados com maior risco de declínio funcional. Além da desnutrição calórico-proteica, a baixa ingestão de folatos e vitaminas D, E e C está associada com risco aumentado de declínio funcional em alguns estudos.
A polifarmácia, bem como medicações específicas, geralmente incluindo anticolinérgicos e benzodiazepínicos, estão associadas com declínio funcional. Entre as condições comórbidas, artrite, doença cardiopulmonar crônica, doenças neurológicas e dor crônica colocam os pacientes em maior risco. A hospitalização é um precipitante importante de declínio funcional; mais de um terço dos idosos hospitalizados por uma condição clínica aguda apresentam declínio na sua capacidade de realizar as AVDs básicas. Os fatores de risco de declínio funcional durante a hospitalização incluem idade mais avançada, limitações funcionais pré-hospitalização, uso de um equipamento de assistência, sintomas depressivos e déficits cognitivos. Úlceras por pressão, repouso no leito e delirium durante a hospitalização também estão associados com declínio funcional. O Hospital Admission Risk Profile (Perfil de Risco
de Admissão Hospitalar) classifica idosos hospitalizados recentemente como de risco alto, intermediário ou baixo para declínio funcional com base na idade, função cognitiva e função de AIVDs pré-admissão. Esse instrumento pode ser usado para direcionar as intervenções preventivas aos pacientes com mais probabilidade de se beneficiarem delas.
PREVENÇÃO DE DECLÍNIO FUNCIONAL 
Idosos residentes na comunidade
O aumento da atividade física é a melhor intervenção para prevenir o declínio funcional ou melhorar o estado funcional em idosos. Treinos progressivos de resistência, exercícios aeróbicos e treinamento de equilíbrio mostraram prevenir o declínio funcional em idosos. O National Institute on Aging produziu um manual dirigido a idosos que fornece informações sobre os benefícios do exercício para a saúde, bem como informações para ajudar a iniciar e manter um programa seguro de atividade física. Idosos sem sintomas cardíacos agudos em geral não precisam de testes adicionais antes de começar um programa de exercício. Embora o exercício de grupo padronizado possa ser benéfico em idosos com melhor funcionamento global, as intervenções mais bem-sucedidas em idosos frágeis têm envolvido programa de exercícios individualizados desenvolvidos por um fisioterapeuta ou outro profissional treinado. A avaliação geriátrica ampla (AGA) e intervenções domiciliares que incluem avaliações multidimensionais de fatores de risco e visitas de acompanhamento também mostraram prevenir o declínio funcional. O manejo dos fatores de risco cardiovasculares pode prevenir o declínio funcional entre idosos relativamente saudáveis. Embora não haja boas evidências mostrando que as intervenções nutricionais previnem o declínio funcional em idosos residentes na comunidade, abordar deficiências nutricionais
pode ter um efeito benéfico sobre a função.
Idosos hospitalizados
Muitas intervenções foram desenvolvidas para prevenir o declínio funcional em idosos hospitalizados. As características fundamentais das intervenções bem-sucedidas incluem avaliação dos fatores de risco; protocolos de enfermagem para melhorar os autocuidados, continência, nutrição, mobilidade, sono, cuidados com a pele e cognição; visitas diárias da equipe multidisciplinar; atenção cuidadosa ao estado nutricional e de hidratação; minimização de cateterismos, medicações potencialmente inadequadas e restrições aos movimentos (cateteres venosos, sondas e contenções); adequações ambientais (corrimãos, passagens desimpedidas, relógios e calendários grandes, sanitários elevados); estímulo para sair da cama e andar. As unidades de Cuidados Agudos para Idosos e os programas de Avaliação e Manejo Geriátrico, que incorporam muitas dessas características, têm reduzido o declínio funcional associado com a hospitalização em alguns estudos. O Hospital Elder Life Program (programa de vida hospitalar de idosos), projetado para prevenir o delirium, também tem sido eficaz na prevenção do declínio funcional.
REABILITAÇÃO: O TRATAMENTO DO DECLÍNIO FUNCIONAL
Assim como em outras síndromes geriátricas, o declínio funcional costuma ser multifatorial, e o cuidado de reabilitação deve abordar múltiplos fatores médicos, psicológicos e sociais. Os ambientes para cuidados de reabilitação variam dependendo das circunstâncias e das necessidades do paciente. Idosos com dificuldades funcionais em ambiente ambulatorial podem receber uma avaliação geriátrica ampla e ser encaminhados para fisioterapia e terapia ocupacional domiciliar ou ambulatorial.
Ao ter alta, os idosos hospitalizados podem receber cuidados de reabilitação em instituições de pacientes internados, em uma instituição de cuidados especializados, por meio de cuidados domiciliares ou em ambientes ambulatoriais. Independentemente do ambiente, a natureza multidisciplinar e os componentes fundamentais da reabilitação são similares. O tratamento do declínio funcional requer atenção em toda a gama de fatores que afetam a função. Uma avaliação completa deve identificar doenças potenciais, sintomas e comprometimentos, bem como os fatores pessoais ou ambientais que contribuem para um declínio funcional do indivíduo. O plano de tratamento então é adequado às necessidades específicas do indivíduo. Por exemplo, um paciente cuja participação na terapia é limitada por insuficiência cardíaca sintomática pode se beneficiar de um manejo clínico mais intenso. Todavia, um paciente com insuficiência cardíaca cuja deambulação é limitada por hipotensão ortostática grave pode necessitar um manejo menos intenso da insuficiência cardíaca de modo a preservar a pressão arterial em posição de pé. Cada membro da equipe multidisciplinar tem um papel importante na reabilitação. Além do tratamento de condições clínicas agudas e crônicas não controladas, a avaliação clínica de um paciente em reabilitação precisa incluir fatores que podem impedir a recuperação funcional, como hipotensão ortostática, controle insatisfatório da dor, delirium e sintomas depressivos. Um farmacêutico pode prestar uma ajuda valiosa na revisão do esquema medicamentoso para identificar as medicações potencialmente inadequadas ou as que contribuem para delirium, fadiga ou dificuldade na mobilidade. Os fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais avaliam e tratam déficits de equilíbrio, força, amplitude de movimento e resistência. Eles também usam modalidades como calor, frio, estimulação elétrica e ultrassom para tratar dor e como adjuntos ao exercício terapêutico. Os terapeutas
também determinam o equipamento de assistência mais adequado para um indivíduo e fornecem treinamento no uso
adequado desses aparelhos. Os terapeutas ocupacionais se concentram nas tarefas funcionais e podem fornecer equipamentos adaptáveis e recomendam alterações ambientais para promover segurança e independência. Os nutricionistas podem ajudar na avaliação do estado nutricional e fornecer recomendações dietéticas. Os fonoaudiólogos também ajudam a garantir a nutrição adequada pela avaliação da mecânica da alimentação; além
disso, eles podem fornecer terapia cognitiva para pacientes com déficits cognitivos. A equipe multidisciplinar também deve incluir o paciente e cuidadores, que serão responsáveis pela manutenção de ganhos funcionais ao término da reabilitação.

Fonte: American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, 5th Edition. Washington DC: American Psychiatric Association; 2013.
Anderson F, Downing GM, Hill J. Palliative performance scale (PPS): a new tool. J Palliat Care. 1996;12(1):5-11. Center for Medicare and Medicaid Services. Long-Term Care Facility Resident Assessment Instrument User’s Manual: MDS 3.0. April 2012. U.S. Department of Health and Human Services. Available